Refugiados. Uma crise previsível para que não houve qualquer preparaçãoAlexandre Reis RodriguesA Europa, mais uma vez, deixou-se apanhar desprevenida. Desta vez, foi pela crise dos “refugiados”, malgrado muitos sinais de que não seria possível passar incólume ao lado do que acontecia na Síria e na Líbia, desde 2011. A seu tempo esta situação deve ser analisada pois há lições a tirar desta postura de inércia, uma espécie de espera que os problemas não lhe cheguem e de um quase fechar dos olhos ao que se passa à volta. No entanto, não é este o momento adequado para o fazer porque há uma emergência a atender: encontrar um entendimento interno sobre como lidar de imediato com a atual crise.
A maioria dos comentadores mostra-se escandalizada com a incapacidade europeia de gerar uma resposta coordenada ao problema de acolher 120.000 “refugiados” e com a falta de solidariedade que isso revela, quer perante o esforço que está a cair sobre os países vizinhos da Síria que absorveram mais de quatro milhões (95% do total), quer pela sobrecarga de um grave problema humanitário com que os países de entrada na Europa estão confrontados (Grécia e Itália). Ambas situações deveriam ter merecido uma ajuda à altura do desafio, o que não aconteceu.
O número que a União Europeia se encontra disposta a acolher é, de facto, insignificante, tanto à luz da situação atrás descrita, como em termos de impacto percentual sobre a totalidade da população europeia. No entanto, é errado fazer o julgamento da capacidade de resposta europeia apenas a partir desta dimensão, para logo concluir – como alguns têm feito - que é desta vez que a União, ao não conseguir responder a este desafio, deixou de fazer sentido. O problema é muito mais complexo do que receber 120.000 “refugiados”, ou 160.000 (o que quer que seja, nomeadamente os 200.000 que António Guterres pretende).
Aliás, este é um número perfeitamente arbitrário, cujo controlo ninguém está em condições de garantir perante a enorme pressão de uma corrente que não para de ganhar força e novas dimensões. Inicialmente, usava apenas a via da travessia mediterrânica, a partir do norte de África, responsável por 80% dos 400.000 que este ano conseguiram entrar ilegalmente na Europa. Hoje, inclui também o percurso marítimo entre a Turquia e alguma ilhas gregas, que é muito mais fácil e tem uma fonte quase inesgotável de candidatos (cerca de dois milhões). Muito claramente, a União Europeia não tem qualquer forma prática de parar a “avalanche” e de falar de forma credível em limites nos vistos a conceder. O pior é que, provavelmente, nem quererá reunir os meios nem assumir a postura que esse objetivo requereria. Sabendo de antemão que fazer o necessário para isso poderá não ser “bonito” de se ver, pelo menos aos olhos bem-intencionados dos que pensam que não deve faltar ajuda aos que fogem da guerra, e que isso pode ter tantos ou mais custos políticos como não fazer nada, as hesitações vão continuar e o problema irá agravando-se. Daqui para a frente, com a nova dificuldade de ter de deportar os que não conseguirem o estatuto de refugiado ou excederem as quotas previstas.
O que nos diz a situação é que o número de “refugiados” a tentar chegar à Europa continuará a crescer enquanto não se atuar sobre os que os faz procurar a Europa, melhor dizendo alguns países europeus, (as causas da movimentação) e sobre as circunstâncias que estão a facilitar estes desenvolvimentos. A causa principal, mas não única, é a guerra na Síria que não vai acabar tão cedo, mesmo que venha a haver, como se deseja, um renovado esforço diplomático, incluindo a Rússia que, como se viu, não vai perder a oportunidade de fazer sentir o peso que ainda pode ter na procura de uma solução abrangente. Se não se forçar uma solução que permita ajudar os 12 milhões que precisam de assistência e 7,6 milhões que se encontram na situação de deslocados internos com graves problemas de subsistência, então a corrente de fugitivos da guerra vai crescer exponencialmente a curto prazo e com ela a crise que abala a Europa. A causa secundária é a situação dos campos de refugiados nos países vizinhos onde quase apenas se proporciona espaço e tenda de abrigo. Sem conseguirem o estatuto de refugiado5 nesses países, incluindo os direitos que a Convenção de Refugiados prescreve, e sem qualquer futuro à vista era natural que, em desespero, começassem a procurar outras soluções.
As circunstâncias que estão a facilitar a movimentação são, essencialmente duas. Em primeiro lugar o caos que se deixou instalar na Líbia, após o derrube de Kadafi, desfecho para que os europeus tiveram um papel decisivo mas de que se alhearam para o subsequente processo de estabilização, nada fazendo para ajudar o país a entrar em alguma normalidade. Cedo se tornou evidente que a Líbia se estava a tornar a última etapa da chamada rota de África para a entrada de “refugiados” na Europa e um local propício à atuação das máfias do crime organizado, quer na promoção de emigração ilegal, quer para o tráfico de drogas. Se nada for feito para atalhar esta situação, com ou sem o acordo das Nações Unidas, a Líbia continuará a ser uma das situações a que mais se deve a crise porque passa a Europa. E não se conte com qualquer ajuda dos EUA. Em 2013, quando havia mais de 2,5 milhões de sírios a fugir á guerra, aceitaram 36 refugiados. Presentemente, prometem aceitar 10.000 número a comparar com os 48.000 a que a Alemanha concedeu asilo em 2014, mais 33.000 na Suécia, 24.000 na Itália e França e 14.000 no Reino Unido..
Em segundo lugar, há a referir a euforia inicial da política de “portas abertas” e a suspensão da “Dublin Regulation”, que dispensa o pedido de asilo no país de entrada da União Europeia. Foram decisões da Alemanha que vieram exacerbar o problema, encorajando – diria eu irresponsavelmente - muitos refugiados a passar por riscos que têm posto em causa as suas próprias vidas e que os têm mergulhado em situações extremamente desumanas que ninguém já sabe como evitar ou minimizar. A Chanceler Merkel, aparentemente, esqueceu-se de um aspeto elementar. O de que nem todos os países da União reúnem condições para acolher refugiados, muito menos da forma aberta que previu para a Alemanha mas de que está agora a recuar. Aliás, não teve em conta que as declarações humanitárias de boas-vindas a todos os “refugiados” faziam correr o risco de estimular o fluxo para proporções incontroláveis.
Entretanto, algum bom senso parece estar a chegar, aliás também pela mão da própria Alemanha cujo governo acabou por estimar que poderia vir a confrontar-se, mesmo só este ano, com mais de 800.000 pedidos de asilo, número que outras forças preveem que será muito superior, mantendo-se a tendência atual. Parece estar a tentar-se pôr de pé um novo processo que instituirá algum controlo de fronteiras e procurará atuar nas frentes de partida no norte de África e Médio Oriente e de entrada na Europa para tentar reduzir o fluxo.
É obviamente o que faz sentido mas é também o mais difícil porque será neste campo, muito mais do que na aceitação de certas quotas de refugiados, que fica sob teste a solidariedade europeia. O que está implícito nesta linha de ação é pôr um ponto final no “empurrar” o problema de uns para os outros, o que, numa espécie de “efeito de balão” apenas transfere o problema de um lado para o outro sem nada de fundo se alterar. Ou seja, acertar uma política comum que encare o problema ao longo de todas as rotas possíveis e respetivas etapas, portanto, que não deixe sozinhas a Grécia e a Itália (bem como a Turquia) com um problema que diz respeito a toda a União.
Oxalá se perceba que esta é, realmente, a área mais decisiva no atual contexto. Se não houver um controlo em que todos possam confiar e medidas sérias que ponham alguma ordem no caos que entretanto se instalou, então a ansiedade natural que esta situação está a criar entre os europeus não vai permitir aos políticos convencer as suas populações de que há espaço e condições para acomodar “refugiados”. Não é apenas uma questão de dinheiro. São também os receios compreensíveis dos vários possíveis impactos (sociais, culturais, religiosos, identitários, etc.).
O que certamente também não ajuda à solução da crise, porque não é uma abordagem séria, é usar o argumento, em defesa de uma política de “portas abertas”, de que a Europa está perante um problema demográfico de envelhecimento e precisa de absorver mão-de-obra do exterior. Como todos sabem, esta questão não se resolve com políticas permissivas de fronteiras abertas deixando o défice existente ser preenchido ao livre arbítrio dos que se decidem aventurar. Implica um plano a gerir em função das necessidades, com critérios estabelecidos e dentro de um calendário.
Finalmente, a questão de distinguir entre refugiados, que procuram a segurança que não têm nos seus países de origem, e os chamados migrantes económicos, que procuram sobretudo melhor nível de vida. Os mais de quatro milhões que procuraram algum refúgio na Turquia, no Líbano e outros países da área qualificam-se certamente como refugiados mas muitos dos que estão a chegar à Europa movem-se sobretudo por aspirações de uma vida económica melhor mostrando-se até dispostos a correr riscos, que de outra forma não enfrentariam, ao entregarem-se nas mãos de máfias sem escrúpulos. É o próprio Comissariado para os Refugiados que reconhece esta realidade quando diz:
«Many chose to move not because a direct threat of persecution or dead, but mainly to improve their lives by finding work, or in some cases for education, family reunion, or other reasons”. O que muitos, senão quase todos, procuram como destino final é a Alemanha. Não é a Grécia nem a Itália, ou os pontos intermédios da chamada rota dos Balcãs, onde não identificam oportunidades semelhantes. Querem apenas chegar aos países mais ricos, como é também o caso dos que aguardam em Calais uma oportunidade de entrar no Reino Unido. Realisticamente, se não se estancar a entrada maciça de “refugiados” e começar a verificar o estatuto logo desde o início, num esforço em que os Países de entrada têm que ser muito ajudados, então o caos vai acentuar-se e os processos de deportação, que agora a Alemanha tenta apressar para retificar os erros cometidos, tornar-se-ão muito penosos.
Independentemente das dificuldades em seguir esta estratégia – serão muitas – não resta senão discutir como a implementar e começar a concretizá-la. Será sempre melhor seguir esse caminho por opção do que forçados pela constatação, mais dolorosa, de que uma migração maciça e descontrolada terá um impacto negativo (financeiro e social) bem maior do que começar, desde já, a tomar medidas sob uma visão que, de forma abrangente, inclua todas as possíveis áreas de intervenção para, em primeira instância, começar a conter o problema.
http://database.jornaldefesa.pt/crises_ ... giados.pdf