O Combate da “Vega”
Visto da Fortaleza de Diu. O Coronel Dias Antunes era em 1961, Alferes do Exército, e tinha sido destacado para uma Companhia de Infantaria, para o longínquo distrito de Diu, no então Estado da Índia Portuguesa. É nesta situação que se encontra na altura do ataque da União Indiana e foi testemunha do combate da lancha “VEGA”.
R. A. – Em que ano chegou a Diu e em que situação?
D. A. - Cheguei a Diu em 15 de Junho de 1960, integrado na Companhia de Caçadores nº 3, tendo ficado colocado como Comandante do Pelotão de Acompanhamento (Armas Pesadas), o qual ficou instalado na Fortaleza.
R. A. – Naquela altura, qual era a situação em Diu e na Índia Portuguesa em geral?
D. A. – De uma grande tranquilidade. O Governador, Sr. General Vassalo e Silva estava a fazer um excelente trabalho e, economicamente, a Índia Portuguesa era das poucas províncias ultramarinas que não constituía encargo para o governo português. Já sob o ponto de vista militar a situação era difícil. Sem entrar em mais pormenores basta que lhe diga que os cunhetes das munições de Morteiro de que dispúnhamos, tinham na tampa uns carimbos, de cor vermelha, que diziam: “WEST POINT – 1954 – REJECTED”!
Material antiquado, velho e com efectivos em pessoal cada vez menores!
R. A. – Qual era de uma maneira geral, o relacionamento dos militares com a sociedade civil?
D. A. –A relação entre nós e a população civil era a melhor possível, de uma sincera fraternidade e amizade. Confirmámos isso depois da rendição.
R. A. – Qual era o efectivo militar nessa altura?
D. A. – Para além da minha Companhia, havia também o pessoal da Bateria de Artilharia, da PSP, Guarda Fiscal, algum pessoal do Comando e, claro, o Pessoal da Marinha constituído pela guarnição da lancha “VEGA”, e 3 homens da lancha “Folque” dos serviços hidrográficos, num total aproximado de 350 homens. Pessoal civil, natural da Metrópole, não havia ninguém.
R. A. – Havia grande confraternização entre os ramos?
D. A. –A natural defesa para um grupo pequeno, numa terra tão pequena é a de se unir. Mas de facto o ambiente era excepcional. Basta acrescentar que, ainda este ano, na noite de 17 para 18 de Dezembro nos continuaremos a reunir, como vimos fazendo nos últimos vinte anos! Com o pessoal da Marinha, desde o então Primeiro-Tenente Geraldes Freire, mais tarde Seixas Serra e a finalizar Oliveira e Carmo, com todos eles a amizade e confraternização eram uma constante.
R. A. – Quando é que notaram alterações por parte da União Indiana?
D. A. –Três meses antes começam a notar-se os primeiros sintomas de que algo se estava a preparar, com contínuos sobrevoos de Diu por parte de aviões militares, os quais imaginávamos que estariam fotografando em pormenor todo aquele pequeno território. Numa linha de caminho de ferro que corria cerca da fronteira, também detectámos o transporte inusitado de tropas, canhões etc., num aparato militar tremendo. O Comando recebeu informações que lhe confirmavam a deslocação para os arredores de Diu de tropas e material de guerra (efectivos calculados em cerca de 4.500 homens).
R. A. – Em Diu havia um plano para enfrentar as Forças Indianas em caso de invasão?
D. A. – O plano da defesa de Diu que, devido à pequenez do território e aos reduzidos meios de que dispunha, era forçosamente simples, foi cumprido. Assentava ele fundamentalmente nos seguintes pontos:
a) Resistência dos Postos exteriores da Guarda Fiscal e Polícia, enquanto possível;
b) Ocupação da zona do Aeroporto e arredores;
c) Defesa da muralha exterior da cidade, a cargo da Companhia de Caçadores, menos o seu pelotão destacado para a zona do Aeroporto, e o Pelotão de Armas Pesadas que estava na Fortaleza, onde constituía uma base de fogos;
d) Defesa final, efectuada na Fortaleza, à custa dos meios recolhidos, incluindo a Bateria de Artilharia, actuando como Infantaria;
Não foi possível a sua execução completa, porque depois do primeiro embate em que se combateu toda a noite, até ao esgotamento de munições no caso dos Morteiros, de manhã a U. I. entrou com os seus aviões a jacto e a partir desse momento era completamente impossível sair sequer dos buracos onde nos tínhamos enfiado...
A Fortaleza, nosso teórico último reduto, estava completamente devassada e destruída.
R. A. – Quando começou a desenrolar-se o combate?
D. A. – Na madrugada de 18 de Dezembro, cerca das 1.30, a U.I. iniciou a invasão tentando entrar por dois pontos: a península de Gogolá, defronte de Diu, e um posto fronteiriço (Porto Covo).
Em ambos os postos, sobretudo em Gogolá onde havia mais concentração de tropas, e devido à forma maravilhosa como se comportaram os (poucos) homens da Guarda Fiscal e Polícia que neles se encontravam, os ataques foram repelidos com bastantes baixas por parte da U. I. e apenas alguns feridos da nossa parte. Para Gogolá foi onde se concentrou todo o nosso fogo de apoio, quer por parte dos Morteiros, quer por parte das peças de Artilharia.
Esta acção durou até cerca das 5.30 da manhã, e como entretanto se tinham esgotado as munições dos Morteiros que estava comandando, apresentei-me no posto de Comando ao Sr. Major Lucena de Vasconcelos, Governador e Comandante-chefe, o qual me ordenou “que ficasse por ali”. O posto de Comando tinha uma posição elevada e dispunha de uma janela sobre o canal de onde eu vi a lancha “VEGA”, com o seu Comandante Oliveira e Carmo de farda branca (adiante explicarei porquê) e com o qual eu troquei uns acenos de saudação. Neste momento um marinheiro aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa que fez com que ele se precipitasse para o alarme de postos de combate, tendo-me acenado para a ponta da ilha. Ali duas esquadrilhas de aviões a jacto iam destruindo com uma rapidez incrível todos os postos fronteiriços e – pensámos nós – sepultando no seu interior os seus bravos defensores.
Também na mesma altura se identificou ao largo de Diu, mas muito perto para os seus canhões, o cruzador “Nova Delhi” que entretanto começara a bombardear a Fortaleza.
Corri para perto do meu pessoal, pelo caminho fui atacado pelos aviões, e do buraco onde todos nos enfiámos, de vez em quando vinha até ao cimo das muralhas de onde...
R. A. – Assistiu à acção da “VEGA”?
D. A. – Assisti à acção da “VEGA”! Vejo-a sair a toda a velocidade a caminho do cruzador, tendo sido atacada no caminho pelos aviões a jacto! O Comandante manejando com perícia o leme, furtava-se repetidamente aos vários ataques que lhe eram dirigidos (eram visíveis no mar os rastos das várias rajadas), e assim
conseguiu atirar abaixo três aviões inimigos! Fantástico! E continuava a gritar com o seu pessoal: Força neles! Dá-lhes agora, Ramos! Boa Aníbal!” Extraordinário!
Mas após um breve intervalo de reabastecimento, quando os aviões vieram outra vez, ao primeiro ataque desta vez cruzado, ao fugir de uma das rajadas, caiu em cheio no meio da outra, e foi o fim! As balas entravam por cima e saíam pelo fundo da lancha construída em fibra, e logo nessa primeira rajada a embarcação ficou em chamas, a meter água, mas ainda com o atirador da peça de Artilharia a fazer fogo! O convés era um mar de sangue, pois foram cortadas ambas as pernas ao Oliveira e Carmo e ferido de morte o marinheiro-artilheiro Ferreira. Ao Comandante ainda com vida, tentaram passá-lo para uma balsa lançada entretanto na água, mas nova rajada acabou de vez com a sua vida!!
Essa é uma imagem que jamais esquecerei!!!
R. A. – Conseguiu ouvir as palavras que o Comandante dirigiu à guarnição antes do combate?
D. A. – Não. Mas durante o cativeiro e como me continuei a dar muito bem com o pessoal da Marinha (tendo sido até escolhido pelo Governador para recolher oficialmente o relatório deste pessoal), falámos várias vezes deste assunto tendo todos de uma forma geral referido que as suas palavras tinham sido de exaltação e estímulo, mais ou menos: “Rapazes! Sei que vão cumprir assim como eu! E que mais vós quereis se não acabarmos numa batalha! Fazemos parte da defesa da Pátria e vamos cumprir até ao último homem e última bala! Eu até me vou vestir de gala porque assim morrerei com mais honra!!”
E depois de isso, fizeram-se as despedidas, as fotografias dos entes queridos foram beijadas e guardadas nos calções e partiram com aquele Comandante com quem iam até ao fim do mundo!!!
R. A. – Hoje, 40 anos depois, o que se lhe oferece dizer?
D. A. – Analisando a atitude do Comandante Oliveira e Carmo, de ter visto a forma como ele encarou a situação, tem que se enaltecer o grande patriotismo, honestidade profissional, hombridade e enorme coragem. Ele teve tempo suficiente para se preparar e preparar o pessoal para o combate, preparou-se para cumprir uma ordem e nesse cumprimento, morreu. A guarnição estava perfeitamente moralizada e o exemplo dele foi de tal forma empolgante que todos o seguiam.
Ainda há heróis em Portugal!
Só lamento que o seu nome seja tão pouco conhecido e honrado, sobretudo junto da nossa juventude!
http://www.marinha.pt/extra/revista/ra_ ... pag24.html