Ressurreição de uma potência
Apesar do ensejo separatista e da política de mão de ferro, a crescente economia russa dá sinal de futuro promissor
A terça-feira dos moscovitas foi dedicada ao luto pelas 35 vítimas de um atentado à bomba no começo da semana. Velas foram acesas e flores deixadas no aeroporto de Domodedovo, palco da explosão.
As reações do primeiro-ministro Vladimir Putin e do presidente Dmitrii Medvedev foram parecidas: caçar os culpados e puni-los. Putin logo descartou que o golpe tenha vindo da Chechênia e apontou o dedo para a região do norte do Cáucaso, berço de uma insurgência islâmica em ebulição. Como lhe é típico, falou grosso, clamou por "vingança" e "inevitável retaliação". Já Medvedev, "sócio de Putin no poder" - segundo definição do diretor do Comitê de Estudos da Rússia e Europa Oriental da Universidade de Oxford, Christopher Davis, - pôs em prática seu perfil de administrador. Mais moderado que o parceiro, procurou botar ordem no "estado anárquico" do sistema de segurança. Demitiu o chefe da polícia de transportes e pediu "reestruturação" do Ministério de Interior, encarregado da defesa interna.
Para Davis, americano de Massachusetts, formado em Harvard e professor de transições econômicas em Oxford desde 1991, apesar do ensejo separatista e do desejo da elite política de botar rédeas na democracia, tudo aponta para um futuro promissor no país. Ele explica: a Rússia se recupera bem da crise financeira, fez bom uso de suas reservas acumuladas nos últimos dez anos e já retomou o crescimento. Com Obama, foi aberta uma nova era para a estabilidade diplomática com o antigo inimigo da Guerra Fria. A qualidade de vida também melhorou. A classe média cresceu e Moscou foi invadida por carros e estilo. Sim, ainda há os nostálgicos dos velhos tempos, quando o emprego era garantido e o calendário recheado de feriados nacionais. Mas esses são minoria, garante Davis. Os jovens querem mais é consumir e a fuga de capitais não é mais problema. A elite está assegurada e disposta a investir pesado na pátria mãe.
Depois do atentado no aeroporto de Domodedovo, Putin falou de ‘retaliação’ e Medvedev procurou demitir os culpados, numa demonstração de força. A atitude desses políticos no momento pode influenciar as eleições da Duma (Assembleia Nacional Russa) em dezembro e a corrida presidencial do ano que vem?
Ambos querem mostrar força e garantir que não tolerarão chantagem e incompetência. Ao longo dos anos Putin fez declarações parecidas depois de ataques terroristas, dizendo que vai caçar os culpados e exterminá-los sem piedade. Esse é o Putin. Ele é o cara das respostas fortes. Medvedev, por outro lado, tenta ser mais diplomático. Eles têm históricos diferentes, um é militar, o outro é advogado. Mas passaram muito tempo juntos e hoje são sócios no poder. Só não está muito claro quem é o sócio majoritário e quem é o minoritário. Eles podem ter linguagens diferentes, mas todas as questões importantes são compartilhadas. Não há diferenças substanciais no modo como Putin e Medvedev negociam com o Ocidente e com empresas estrangeiras. Mas há quem aponte diferenças entre os dois e se pergunte: Medvedev se curvará a Putin e deixará que assuma um terceiro mandato presidencial? Não sei. Mas de modo geral a liderança política do país quer uma democracia gerenciada e impõe restrições aos processos políticos.
Em seu discurso no Fórum Econômico Mundial em Davos, na quarta-feira, Medvedev anunciou que vai investir US$ 15 bilhões em resorts de esqui no norte do Cáucaso. Como o sr. avalia a política do Kremlin na região?
Desde o início da era Putin, ficou muito claro que a Rússia não iria tolerar que o ensejo separatista na fronteira criasse um abismo territorial. Essa atitude deu margem a duas guerras na Chechênia, assim como muitas operações de contrainsurgência no norte do Cáucaso. O governo tem grandes programas de infraestrutura na região e está tentando atrair investimentos privados para instalações esportivas voltadas para os Jogos de Inverno e a Copa do Mundo, a fim de conquistar algum poder ali. Essa região é difícil de controlar e os insurgentes fazem uso de uma estratégia de guerra assimétrica. Ou seja, como a Rússia é muito forte na esfera militar convencional, então a resposta é achar alvos em lugares como um grande aeroporto internacional. O que é muito difícil de prevenir.
Dirigindo-se aos americanos, Obama também discursou sobre economia nessa semana. Disse que o país vive um novo ‘momento Sputnik’. Heranças da Guerra Fria ainda pautam o diálogo entre Washington e Moscou
O momento Sputnik foi importante para os Estados Unidos reavaliarem sua visão sobre o status tecnológico da União Soviética. Até o final do anos 50, os EUA acharam que estavam na frente, mas foi então que a URSS lançou, inesperadamente, o satélite Sputnik. Hoje, os EUA veem que a Rússia é um país com setores de ponta, particularmente a indústria bélica, mas nada que ameace os americanos. A preocupação atual de Washington é com o avanço astronômico da tecnologia chinesa ou até mesmo do avanço indiano, mas os russos não são mais um problema. As relações avançaram desde o fim do regime soviético, apesar de alguns incidentes terem afetado o bom diálogo entre as nações nessa década. Não foi sensata a decisão de Bush filho de colocar radares antimísseis em países da Europa Oriental, supostamente para proteger a Europa Ocidental de ataques do Irã. O apoio dos EUA às intenções da Geórgia de integrar a Otan também criou rusga com a Rússia. Mas recentemente Obama quis apertar a tecla "reset" e abrir caminho para a estabilidade diplomática. O novo Start, que garantirá cortes substanciais dos arsenais nucleares, é exemplo disso. Outra prova é o incidente no ano passado, quando espiões russos foram encontrados nos EUA. Ninguém foi processado e os espiões puderam voltar para casa e mudar de profissão.
E como anda a relação entre a Rússia e a China?
No momento existe uma relação bem próxima entre os dois. Mas me lembro que nos anos 90, quando a situação política e econômica russa era pior, havia o pensamento de que a ascensão do poder chinês era uma ameaça. Há os que temiam pelo futuro da Rússia devido a esse desequilíbrio na região. Mas a economia russa se recuperou e tem crescido sistematicamente nos últimos dez anos. Existe mais confiança no país. Taticamente, ambos os países se assemelham na forma como se relacionam com os Estados Unidos. Existe um comércio importante entre os dois. Muitos planos entre Moscou e Pequim estão sendo traçados para o futuro.
Em Davos, Medvedev também falou sobre um plano bilionário de privatização. Como está a situação econômica do país?
O ano de 2009 foi ruim para Rússia, mas o governo usou o fundo de reserva que o país acumulou na última década com os impostos sobre o petróleo para suavizar os efeitos da crise. O aumento do preço do petróleo no mercado mundial também ajudou na recuperação econômica. A Rússia cresce agora a 4% ao ano. O governo sabe das fraquezas das instituições econômicas, entende que não pode mais depender das exportações de petróleo, gás, metais e madeira. Por isso, o slogan do Kremlin hoje é a modernização. A privatização ajudará a equilibrar as contas.
Que lições tirar da onda de privatização que ocorreu no início dos anos 90, no processo de abertura econômica e política do país?
A privatização sob o governo de Boris Yeltsin se deu num ambiente desprovido de um sistema bancário eficiente ou de mercado de ações e com muita corrupção. O programa de estabilização não funcionou. A inflação era da ordem de 9%. E não houve a modernização do parque industrial que era esperada com a privatização, que presume melhor administração das firmas. Em meio ao caos, havia uma nostalgia do passado e um sentimento de que a União Soviética teve um significado maior para o mundo, coisa que uma Rússia enrugada não tinha mais. Yeltsin fez acordos com as oligarquias e foi bem sucedido em se reeleger. Ele vendeu a propriedade do governo para as elites por preços baixíssimos, o que resultou numa entrada rápida dessas elites no sistema de mercado e possibilitou o enriquecimento rápido. O público estava vendo o que acontecia e ficou muito ressentido do governo.
O estilo de vida ocidental influenciou o esfacelamento do modelo soviético?
Quando Mikhail Gorbachev apareceu nos anos 80, ele encarnava uma onda mais jovem da política, que tinha contato com o mundo externo e estava consciente dos avanços de estilo de vida em outros países. Ele sabia que a URSS precisava de mais dinamismo na economia. Vieram então a série de reformas e uma tentativa de abrir o regime e introduzir eleições no Partido Comunista. Estava aberto o caminho para o desmantelamento da União Soviética. O Ocidente não teve participação direta nisso, mas representava um modelo alternativo e, por causa da corrida armamentista e da competição econômica, estava pondo pressão sobre o modelo soviético. Agora, no período de transição, a questão é outra. Os reformistas russos prestaram bastante atenção aos conselhos dos economistas ocidentais. Às vezes, esses conselhos tinham resultados bem sucedidos, como nos países da Europa Oriental, mas na Rússia ainda há um sentimento de que o Ocidente se meteu demais, sem entender o que estava acontecendo no país no começo dos anos 90, e tendo contribuído para os problemas da economia. De 1991 a 1999, o país não cresceu. As pessoas tiveram suas poupanças tomadas, a saúde piorou, a pobreza aumentou. O russo médio culpava o Ocidente pelos problemas.
Como é a pirâmide social russa hoje? Há uma classe média robusta?
Existe uma classe média mais vasta por causa do fortalecimento da economia nos últimos 20 anos. Por muito tempo as elites, que estavam fazendo fortuna com as privatização, temiam que os comunistas voltassem ao poder e usurpassem suas riquezas. Por um tempo, houve um problema sério de fuga de capitais no país. Com Putin, a economia estabilizou. As elites foram asseguradas e o dinheiro retornou. Hoje, tem muito mais dinheiro rodando pelo país. Se você for para Moscou, verá uma sociedade em que o consumo está em ascensão: booms de construção, carros por todo lado, mais importação, mais estilo. O turismo também aumentou, você vê russos passeando na Inglaterra e França. Para grande parte da população, a qualidade de vida é bastante razoável. O abismo maior se dá no campo, onde a renda das famílias é menor e as oportunidades de ascensão social são escassas.
Ainda há nostalgia do período soviético?
Sim, mas depende da classe social, da ocupação e da geração sobre a qual se está falando. Os jovens abaixo de 30 anos não têm memória nenhuma do colapso do regime e nada sabem sobre a vida nos "dias antigos". As pessoas em seus 50 anos viveram uma juventude complicada no final dos anos 80, mas podem ter conseguido se adaptar às condições de mercado e tocar a vida numa boa. Mas a nostalgia bate forte mesmo na geração dos sexagenários, pessoas que tinham uma boa carreira como funcionários públicos e que perderam seus empregos, seu prestígio, sua casa bem mobilada. Antes elas não tinham tanta pressão sobre seu desempenho no trabalho, prática que veio com o introdução da economia de mercado e a noção de competitividade. Com a queda do regime soviético, perderam os bons serviços de saúde, a previdência e os muitos feriados. Esses são os que dizem que as coisas eram melhores antes, mas são parcela limitada da população.
Christopher Davis é economista da Universidade Oxford e diretor do Comitê de Estudos de Rússia e Europa Oriental
Fonte: estadão