José Rodrigues dos Santos responde a críticas: “Colombo, fascismo e História”A resposta de José Rodrigues dos Santos às críticas do historiador Roger Lee de Jesus
A propósito de uma entrevista que dei ao Jornal 2, o historiador Roger Lee de Jesus acusou-me de “difundir teorias da conspiração da História, sem qualquer sustento nem credibilidade” e também de ter “desprezo implícito pelo trabalho académico”, o que considerou uma “vergonha nacional”
A crítica, difundida pela Visão, incidiu em dois pontos: a tese apresentada no meu romance O Codex 632 sobre a possível origem portuguesa de Cristóvão Colombo e a tese apresentada na minha trilogia do Lótus, e em particular no primeiro tomo, As Flores de Lótus, sobre as origens marxistas do fascismo.
Comecemos por Cristóvão Colombo. Diz o professor Lee de Jesus, se corretamente citado, que “há centenas de documentos da época a comprovar a naturalidade de Colombo” e que sobre isso há um “consenso” entre os historiadores.
Ora eu no Jornal 2 disse que “não existe nenhuma prova sólida de que ele fosse de facto genovês”, que “na verdade, há sugestões de que ele poderia ser português” e que, depois de O Codex 632 ser publicado em 2005, “houve historiadores que apareceram em público a dizer que achavam também que ele era português”, afirmações que, até prova em contrário, mantenho.
Existem múltiplas referências históricas às origens genovesas de Colombo, a começar por d’Anghiera e a acabar em Assereto. O problema é que os documentos em questão resultam de fontes secundárias sem que os originais tenham sobrevivido ou então estão carregados de incongruências que minam a sua credibilidade ou são de autores a citarem-se uns aos outros.
Por exemplo, Angelo Trevisano foi o primeiro a indicar claramente a origem genovesa de Colombo, mas do seu Libretto de 1504 não sobreviveu nenhum exemplar e tudo o que sabemos sobre o seu conteúdo é baseado no Paesi de Montalboddo de 1507. Mas sabemos que Trevisano não conhecia Colombo e assumiu abertamente a intenção de mostrar que “só os itálicos descobriram terras”, além de que estamos a lidar com uma fonte secundária. É isto uma prova sólida?
Como vemos, toda a questão é muito técnica, de pormenores quase bizantinos, e não é fácil debatê-la em textos para o grande público. O professor Lee de Jesus seguramente reconhece a importância da crítica dos documentos. Se estes têm problemas, então não constituem provas “sólidas” – tal como eu disse no Jornal 2.
Os dois principais documentos habitualmente invocados para associar Colombo a Génova são o Mayorazgo e o documento Assereto. Terei o maior prazer em discuti-los aqui se o professor Lee de Jesus os invocar, mas aviso que será uma conversa técnica.
O professor Lee de Jesus, por outro lado, mostra-se cioso da questão do “consenso” na historiografia. A este propósito, deixe-me recordar-lhe que o historiador Veríssimo Serrão emitiu em 2008 uma declaração por escrito a dizer-se convencido “a 99%” das teses do Colombo português. Já Armando Cortesão tinha a mesma convicção. Acha mesmo que isso acontecia porque a teoria está “sem qualquer sustento nem credibilidade”?
Por fim, a referência en passant que o professor Lee de Jesus fez sobre as minhas afirmações relativas às
origens marxistas do fascismo, incluindo-as na categoria de “achismos” e “opiniões sem fundamento”, acusando-me de ter mostrado “desprezo implícito pelo trabalho académico” e de fazer parte de um grupo de jornalistas que “fazem afirmações sobre um campo científico que não dominam”.
Sobre isto poderei dizer várias coisas. A primeira é que sobre este tema defendi recentemente uma tese académica na Sorbonne, em Paris, em co-tutela Universidade de Paris-Panthéon-Assas e Universidade Aberta, perante um júri internacional e tendo o ex-diretor do Centro de História de Sciences Po, Marc Lazar, como arguente. A tese foi avaliada em 19 valores e mereceu da parte do júri uma “forte recomendação de publicação”. Claramente, ao classificar como “achismo” um trabalho académico revisto e aprovado por pares, o professor Lee de Jesus está a mostrar “desprezo implícito pelo trabalho académico”.A segunda coisa que lhe posso dizer é que me parece surpreendente ainda haver historiadores que desconheçam as origens marxistas do fascismo. Quero explicar-lhe que
o fascismo nasceu em 1915 com os Fasci d’Azioni Rivoluzionaria, um grupo de comunistas, sindicalistas e anarquistas que acreditavam na violência revolucionária marxista e achavam que a Grande Guerra conduziria à revolução socialista.
Em 1919 formariam os Fasci di Combattimento, cujos ideólogos eram todos socialistas e cujo programa exigia salário mínimo, horário laboral de oito horas, representação dos trabalhadores nas fábricas, entrega de gestão a organizações proletárias, expropriações, imposto sobre o capital, etc.Os fascistas fundaram o seu jornal, intitulado Il Popolo d’Italia – Quotidiano Socialista, diretor Benito Mussolini. Elogiaram entusiasticamente a revolução de 1917 na Rússia, dizendo “seja bem-vindo o comunismo”, tendo Mussolini escrito: “saúdo com admiração devota e comovida as bandeiras vermelhas (…) de Petrogrado”.
O caos revolucionário na Rússia, no entanto, contribuiu para que condenassem os bolcheviques – a exemplo de muitos socialistas europeus, aliás. De socialistas marxistas, os fascistas passaram a socialistas pós-marxistas, pois deixaram de acreditar no internacionalismo proletário e na luta de classes, tendo
Mussolini estabelecido claramente que o fascismo seria “um socialismo antimarxista, por exemplo, e nacional”.
Nunca renegou estas palavras e no final da vida, em 1945, disse: “fui e sou socialista”.São múltiplas as declarações dos ideólogos fascistas a estabelecerem o fascismo como um socialismo, de Mussolini a Olivetti, de Spirito a Panunzio, de Carli a Malaparte, de Farinacci a Bottai, de Ricci a Solaro. Também dirigentes e investigadores comunistas, como Togliatti, Tasca, Chiesa, Galkin e Vajda, o reconheceram. Sendo académico, é inesperado que o professor Lee de Jesus faça “afirmações sobre um campo científico que não domina(m)”.
A terceira coisa que lhe posso dizer é que está a mostrar “desprezo implícito pelo trabalho académico” de tantos colegas seus que pesquisaram as origens marxistas do fascismo e toda a sua dimensão socialista. Isso foi feito da parte deles com muita seriedade e coragem – sim, coragem, professor Lee de Jesus, pois coragem é realmente preciso ter, e muita, para trabalhar este tema perante todos os insultos, intimidações e interesses ideológicos que se sobrepõem à investigação científica e tentam destruir carreiras para inibir a exumação dos factos.
Quer exemplos de historiadores que o fizeram? Aí vão eles. Michel Winock descreveu os fundadores do fascismo como “uma ultra-esquerda”; Emilio Gentile escreveu que “na reunião que fundou os Fasci di Combattimento (…) participaram uma centena de pessoas, a quase totalidade militantes da esquerda intervencionista”; Domenico Settembrini salientou que “os dirigentes (do fascismo) eram provenientes em grande parte do socialismo e do sindicalismo vermelho”; David Roberts falou abertamente na “evolução dos sindicalistas do marxismo para o fascismo”; Richard Pipes tornou claro que “o fascismo emergiu da ala ‘bolchevique’ do socialismo italiano”; Frédéric Le Moal sublinhou que “não foi diretamente do mundo” do nacionalismo “que saiu o fascismo, a maior parte dos seus chefes e mesmo o principal deles, mas do socialismo”; Augusto del Noce disse que “o fascismo assumiu uma posição revolucionária de origem marxista”; e por aí fora.
Por favor, professor Lee de Jesus, se souber italiano leia Mussolini, o Revolucionário, de Renzo de Felice; O Fascismo de Esquerda – Da Praça do Santo Sepulcro ao Congresso de Verona e Fascismo Revolucionário – O Fascismo de Esquerda do Sansepulcrismo à República Social, de Luca Rimbotti; Fascismo Vermelho – De Saló ao PCI, A História Desconhecida de uma Emigração Política, de Paolo Buchignani; Outra Direita e Esquerda: O Socialismo Fascista, de Roberto Mancini; Os Anarquistas de Mussolini – Da Esquerda ao Fascismo entre Revolução e Revisionismo, de Alessandro Luparini; Irmãos de Camisa Negra – Comunistas e Fascistas do Corporativismo à CGIL (1928-1948), de Pietro Neglie; Companheiro Duce – Factos, Personagens, Ideias e Contradições do Fascismo de Esquerda, de Ivan Buttignon; e A Esquerda Fascista – História de Um Projeto Falhado, de Giuseppe Parlato.
Leia e pare de mostrar “desprezo implícito pelo trabalho académico” de tantos historiadores seus colegas que venceram o medo e investigaram o assunto com honestidade e coragem. Entre eles destaco Renzo de Felice, um historiador oriundo do Partido Comunista Italiano, para quem a historiografia sobre o fascismo andava “atolando-se nas águas rasas de uma espécie de demonologia, boa em termos de propaganda, mas completamente distorcida sob a perspetiva da compreensão racional e, portanto, da explicação histórica”, sendo que este tipo de “discurso tem sido muito mais político do que científico” por parte de “um certo antifascismo de comício”.
Já agora, recomendo-lhe também a leitura de Les tabous de l’histoire, do grande historiador francês Marc Ferro. Nessa obra, Ferro escreveu sobre “todos os silêncios da História”, isto é, os factos históricos cuja existência é conhecida ou acessível aos historiadores, mas nos quais nenhum ousa tocar dada a sua extrema sensibilidade política. Ferro demonstrou que muitos desses temas começaram por ser abordados pelos ficcionistas e só depois os historiadores, a comunicação social e a classe política se atreveram a abordá-los. Exatamente o que eu disse no Jornal 2 e verdade que pelos vistos o incomodou a si.
Quer exemplos? O seu colega Ferro dá vários, mas fico-me por um. O problema do colaboracionismo francês no Holocausto permaneceu durante décadas em silêncio na investigação historiográfica, com todos os historiadores a permitirem que a ideia da inocência francesa nos crimes contra os judeus se consolidasse no registo histórico. Sabe quem quebrou esse tabu? Os romancistas e cineastas, esses malandros que mostram tanto “desprezo implícito pelo trabalho académico”. Ah, que “vergonha nacional”!
Não fique, no entanto, com a ideia de que menosprezo a investigação académica. Jamais. Lecionei durante 25 anos na Universidade Nova de Lisboa e os meus romances assentam essencialmente em investigação científica. A ciência é a chave que nos abre as portas do universo. Aliás, o meu novo romance, O Segredo de Espinosa, mostra justamente o dealbar do Iluminismo e do método científico, com Bacon, Descartes e o judeu português Espinosa, todos eles a desafiarem o dito “consenso”. Gostará de o ler, espero.
Adoro ciência. Mas, como também tenho passado na academia e faço investigação académica, conheço os limites do meio, incluindo os ciúmes, as invejas, os orgulhos, as coutadas e tudo o mais. Sei que o avanço no conhecimento se faz com polémica, com discussão, com roturas de consensos, com zangas e até por vezes com insultos, desqualificações, graçolas ofensivas, diabolizações e ostracismo. Também com corporativismo. Nada de novo debaixo do sol, portanto.
A teoria de que Colombo era português é apenas isso, uma teoria. Não existem provas “sólidas” de que Colombo era português nem de que era genovês. Nunca eu disse outra coisa. Mas há “sugestões” nos dois sentidos. Olhando para os indícios, parecem-me mais fortes os da origem portuguesa do que os da origem genovesa, pelas razões que explico em O Codex 632, obra aliás revista por um historiador especializado nos Descobrimentos. Naturalmente há outras opiniões e não vejo drama nisso.
Quanto às origens marxistas do fascismo, sugiro que estude melhor o tema e não faça afirmações sobre um campo científico que manifestamente não domina.© José Rodrigues dos Santos, 2023