//www.youtube.com/watch?v=PsrCkTAcpEEEu amo você... :lol:
Hoje, no jornal carioca O Dia, o cartunista Jaguar relembra o cronista botafoguense José Carlos de Oliveira, o Carlinhos de Oliveira, considerado um dos maiores cronistas de nossa literatura, mas que anda esquecido; após ler Jaguar, lembrei de uma crônica de Carlinhos chamada "O torcedor", que disponibilizamos há alguns aqui no blog e reproduzo de novo, logo mais abaixo - nela, Carlinhos fala porque virou alvinegro:CitarO Torcedor:Jogam Flamengo e Botafogo, e meu coração se divide. Como qualquer brasileiro, nasci Flamengo; mas, aos 18 anos, decido romper com todos os preconceitos, e mesmo com as crenças mais sensatas que vinha acumulando. Para começar tudo de novo. Resultado: fiquei sem um céu para onde ir depois da morte, e sem um time de futebol que me fizesse experimentar simbolicamente, nos fins de semana, as alternativas de vitória e derrota em que se resume a aventura humana. Uma tarde de domingo, jogavam Botafogo e Fluminense em partida final de campeonato. Toda a cidade estava no Maracanã. Andei pelas ruas desertas, indiferente à sorte do campeonato. Cheguei ao Metro Copacabana e entrei para ver um filme infantil. Lá dentro eram raros os adultos. Na saída, com o sol já se apagando, fui andando na direção do Roxy, e na minha frente ia uma família muito jovem: o marido com uns quarenta anos, a mulher grávida de seis meses.O marido levava ao colo um menino pequeno, e a mulher conduzia pela mão dois outros meninos. Fui andando a pensar na alegria que eles teriam se dentro de três meses nascesse a primeira menina. Provavelmente iriam ter o quarto filho apenas para alegrar o homem, cujo sonho era ser pai de uma gentil criança do sexo feminino. A jovem senhora grávida era bela, de traços finos; usava sandálias sem alças e mostrava uns pés verdadeiramente sublimes. Íamos andando assim quando topamos com um cidadão que, encostado a uma árvore, ouvia um rádio de pilha. Ao vê-lo, o homem, a mulher e as crianças ficaram paralisados. O homem e a mulher se entreolharam em silêncio e ficaram ainda algum tempo indecisos. Depois, o homem, sempre com o filho caçula no colo, aproximou-se cautelosamente do cidadão que ouvia o rádio e falou:- Por favor... Quanto foi o jogo?- Seis a dois – disse o outro.- Ah, seis a dois... Mas para quem?- Para o Botafogo, naturalmente...- Naturalmente! – exclamou então o pai de família, e a jovem senhora ficou com o rosto iluminado. Os dois meninos que iam a pé pularam de contentamento. O pai entregou à mulher o filho de colo, beijou-a na testa, deu adeus aos outros filhos e saiu correndo na direção de um táxi que passava. Entrou no táxi e seguiu para o Túnel Novo.Fiquei curioso para saber o que se passara. Contemplei algum tempo a jovem mulher que seguia agora o seu caminho, com dois filhos pela mão, um terceiro no colo e um quarto na barriga. Adiantei-me e lhe disse:- Queira desculpar, mas... Que foi que houve?- O Botafogo venceu – disse ela – e ele foi para sede do clube comemorar.- Mas – insisti -, se ele gosta tanto assim do Botafogo, por que diabo não foi ao Maracanã? Por que se meteu no cinema?- Para evitar o enfarte! – disse ela, com simplicidade e também com uma espécie de triunfo na voz.- Ah, sim... O Enfarte...A mulher e os filhos seguiram caminho. Entrei num bar e pedi um cafezinho. A partir daquele dia o meu time seria o Botafogo.(Crônica publicada no livro "Para gostar de ler", volume 7)
O Torcedor:Jogam Flamengo e Botafogo, e meu coração se divide. Como qualquer brasileiro, nasci Flamengo; mas, aos 18 anos, decido romper com todos os preconceitos, e mesmo com as crenças mais sensatas que vinha acumulando. Para começar tudo de novo. Resultado: fiquei sem um céu para onde ir depois da morte, e sem um time de futebol que me fizesse experimentar simbolicamente, nos fins de semana, as alternativas de vitória e derrota em que se resume a aventura humana. Uma tarde de domingo, jogavam Botafogo e Fluminense em partida final de campeonato. Toda a cidade estava no Maracanã. Andei pelas ruas desertas, indiferente à sorte do campeonato. Cheguei ao Metro Copacabana e entrei para ver um filme infantil. Lá dentro eram raros os adultos. Na saída, com o sol já se apagando, fui andando na direção do Roxy, e na minha frente ia uma família muito jovem: o marido com uns quarenta anos, a mulher grávida de seis meses.O marido levava ao colo um menino pequeno, e a mulher conduzia pela mão dois outros meninos. Fui andando a pensar na alegria que eles teriam se dentro de três meses nascesse a primeira menina. Provavelmente iriam ter o quarto filho apenas para alegrar o homem, cujo sonho era ser pai de uma gentil criança do sexo feminino. A jovem senhora grávida era bela, de traços finos; usava sandálias sem alças e mostrava uns pés verdadeiramente sublimes. Íamos andando assim quando topamos com um cidadão que, encostado a uma árvore, ouvia um rádio de pilha. Ao vê-lo, o homem, a mulher e as crianças ficaram paralisados. O homem e a mulher se entreolharam em silêncio e ficaram ainda algum tempo indecisos. Depois, o homem, sempre com o filho caçula no colo, aproximou-se cautelosamente do cidadão que ouvia o rádio e falou:- Por favor... Quanto foi o jogo?- Seis a dois – disse o outro.- Ah, seis a dois... Mas para quem?- Para o Botafogo, naturalmente...- Naturalmente! – exclamou então o pai de família, e a jovem senhora ficou com o rosto iluminado. Os dois meninos que iam a pé pularam de contentamento. O pai entregou à mulher o filho de colo, beijou-a na testa, deu adeus aos outros filhos e saiu correndo na direção de um táxi que passava. Entrou no táxi e seguiu para o Túnel Novo.Fiquei curioso para saber o que se passara. Contemplei algum tempo a jovem mulher que seguia agora o seu caminho, com dois filhos pela mão, um terceiro no colo e um quarto na barriga. Adiantei-me e lhe disse:- Queira desculpar, mas... Que foi que houve?- O Botafogo venceu – disse ela – e ele foi para sede do clube comemorar.- Mas – insisti -, se ele gosta tanto assim do Botafogo, por que diabo não foi ao Maracanã? Por que se meteu no cinema?- Para evitar o enfarte! – disse ela, com simplicidade e também com uma espécie de triunfo na voz.- Ah, sim... O Enfarte...A mulher e os filhos seguiram caminho. Entrei num bar e pedi um cafezinho. A partir daquele dia o meu time seria o Botafogo.(Crônica publicada no livro "Para gostar de ler", volume 7)
Dinorah viu irmão matar escritor, levou tiro, seguiu jogando pelo Alvinegro e foi campeão antes de enlouquecer e se suicidar - miserável, inválido e loucoA sequência de acontecimentos atiça a incredulidade: jogador do Botafogo é baleado por Euclides da Cunha, participa da morte do escritor, enfrenta o Fluminense com uma bala cravada na espinha uma semana depois de levar o tiro, é campeão carioca no ano seguinte (enquanto perde parte dos movimentos do corpo), vai parar em um hospício, vira mendigo e suicida-se, miserável, inválido e louco, no Rio Guaíba, em Porto Alegre. De tão absurda, a história parece um roteiro ruim, uma tragédia grega, um causo qualquer. Não é. É incrível, mas absolutamente real - é a história de Dinorah, herói nos campos, vilão na sociedade, vítima em uma tragédia de sangue, amor, traição, literatura e até futebol.Faz mais de um século. A morte de Euclides da Cunha, a cada punhado de anos, é recontada - ora pelo viés dele, ora com foco em sua esposa, Anna, ora concentrada em Dilermando, o amante dela. Dinorah é a vítima (quase) esquecida daquela manhã de domingo em que o autor de "Os Sertões" pegou um revólver para lavar sua honra. De 15 de agosto de 1909, quando foi baleado pelas costas, até 21 de novembro de 1921, quando cometeu suicídio, o zagueiro do Botafogo viveu uma decadência assombrosa. É uma maldade do destino: ele teve sua vida destruída pelas mesmas mãos que escreveram um dos principais livros da história brasileira.O Botafogo campeão de 1910, com Dinorah, já debilitado pelo tiro de Euclides da Cunha (Foto: Reprodução)Abaixo, o leitor conhecerá a trajetória, da glória à desgraça, do jogador campeão carioca de 1910 - título que deu ao Botafogo a alcunha de Glorioso. O relato é baseado em reportagens de jornais durante mais de dez anos e em livros escritos sobre a "Tragédia da Piedade". Em meio a uma série de contradições e versões confusas, esta reportagem prefere se basear especialmente em "Matar para não morrer", da historiadora Mary del Priore, obra lançada em 2009 pela editora Objetiva.A tragédia também foi encenada na televisão. Entre maio e junho de 1990, a TV Globo lançou uma série chamada "Desejo". Em 17 capítulos, a autora Gloria Perez e os diretores Wolf Maya e Denise Saraceni contaram a saga de traição e morte do escritor. Dinorah foi interpretado por Marcos Winter. Tarcísio Meira deu pele a Euclides da Cunha. Vera Fischer encarnou Anna, e Dilermando foi vivido por Guilherme Fontes. Marcelo Serrado, Marcos Palmeira e Vera Holtz também participaram da produção.A preparação para a tragédiaDilermando e Dinorah não deixavam olhares passarem despercebidos em idos da primeira década do século 20. Eram jovens, fortes - o primeiro de cabelos mais claros do que o segundo. Tinham características parecidas, como se um irmão fosse a sombra do outro: ambos viajados (do Rio Grande do Sul para São Paulo, de São Paulo para o Rio de Janeiro), ambos ligados à carreira militar, ambos atléticos. Os dois eram devotados aos esportes. Mas com aptidões diferentes. Dilermando era esgrimista dos bons. Dinorah preferia usar os pés. Jogava foot-ball, um sport que se espalhava pelos grounds (campos) cariocas e começava a se popularizar.Era esguio. Alto, também conseguia ser veloz. Sua missão era desarmar os forwards (atacantes) adversários, mas se arriscava a ir ao ataque de vez em quando. Fazia seus golzinhos - foram nove em 26 jogos pelo Botafogo, seis deles na goleada de 13 a 0 sobre o Hadock Lobo. Tão logo chegou ao Rio, já com a vivência de ter atuado pelo Internacional-SP, foi defender as cores do América. Na zaga rubra, foi aliado de Belfort Duarte, símbolo de disciplina, defensor que tinha asco a faltas. Jogou dois anos lá. Em 1909, trocou de time. Resolveu defender o Botafogo, sem ter ideia da desgraça que o destino bordava para sua vida.Dinorah vivia dias simples. Jogava bola e tinha aulas na Escola Naval. Mas seu irmão era mais inquieto. Com 17 anos, trocava olhares com uma mulher bem mais velha, de 33. Pior: casada. Pior ainda: casada com um dos brasileiros mais célebres na época. Qualquer possibilidade de envolvimento seria um escândalo, uma bomba-relógio. Não poderia acontecer. Mas aconteceu.CitarJOGOS PELO BOTAFOGO09/05/1909 – 2 x 2 Fluminense30/05/1909 – 24 x 0 Mangueira13/06/1909 – 2 x 1 América11/07/1909 – 13 x 0 Hadock Lobo22/08/1909 – 1 x 2 Fluminense12/09/1909 – 2 x 1 Cruzador Amethyst-ING19/09/1909 – 4 x 3 Cruzador Amethyst-ING26/09/1909 – 1 x 1 América02/10/1909 – 2 x 1 A A Palmeiras22/05/1910 – 1 x 4 América05/06/1910 – 9 x 1 Riachuelo26/06/1910 – 3 x 1 Fluminense03/07/1910 – 7 x 0 Hadock Lobo10/07/1910 – 6 x 0 Rio Cricket17/07/1910 – 4 x 4 São Paulo Athletic15/08/1910 – 7 x 2 A A Palmeiras07/08/1910 – 5 x 0 Rio Cricket04/09/1910 – 15 x 1 Riachuelo25/09/1910 – 6 x 1 Fluminense02/10/1910 – 11 x 0 Hadock Lobo12/10/1910 – 2 x 1 Combinado Carioca06/11/1910 – 4 x 4 Fluminense13/11/1910 – 5 x 2 São Cristóvão07/05/1911 – 1 x 2 São Paulo Athletic14/05/1911 – 3 x 0 Rio Cricket23/07/1911 - 3 x 4 Americano-SFoi na Pensão Monat, no número 17 da Rua Senador Vergueiro, no bairro do Flamengo, que Dilermando e Anna começaram o romance proibido. Em 1904, Euclides partiu para uma expedição na Amazônia. Retornou apenas em 1906 - tarde demais para evitar um tórrido relacionamento entre sua esposa e aquele adolescente.Anna foi morar naquela pensão para aplacar a solidão. Lá, viviam duas amigas de sua mãe, Angelica e Lucinda Ratto. Elas eram tias de Dilermando e Dinorah. Solteironas e futriqueiras, logo perceberam algo de estranho no ar. Em um piscar de olhos, a história se espalhou. E chegou aos ouvidos do escritor - que, inicialmente, não acreditou nos rumores.Dinorah nada tinha a ver com a história. No auge do romance, estava em São Paulo, defendendo o Internacional. Não acumulava grandes preocupações. Pressão mesmo era Anna quem sofria. Para evitar maiores fuxicos, Dilermando se mudou. Mas os encontros prosseguiram. As suspeitas aumentaram. A situação começou a ficar incontrolável. O casamento virou um inferno.Dilermando chegou a escrever uma carta para Euclides, alegando inocência. O escritor respondeu, dizendo a ele que se tranquilizasse: "Na sua idade nunca se é um homem baixo. Não creio que houvesse feito uma tal injustiça. A minha casa continua aberta aos que são justos e bons. Não poderá fechar-se para você."Puro teatro. Anna estava grávida de Dilermando, e Euclides percebia a barriga crescendo. Em meio ao caos, Mauro nasceu prematuro - a mãe, em vão, tentara abortar, inclusive inserindo agulhas no corpo. A criança nasceu, mas morreu com oito dias de vida. Houve quem acusasse Euclides de matar o bebê, impedindo que a esposa o amamentasse.Os protagonistas da história viviam o inferno. Euclides lidava com a traição; Anna carregava a fama de adúltera; Dilermando se equilibrava entre uma paixão proibida e a dor pela perda do filho. A situação foi amenizada em 1906, quando o militar foi convocado pelo Exército para retornar ao Sul. Mesmo assim, no ano seguinte, em visita ao Rio, ele reencontrou Anna. E a engravidou.Nasceu Luiz, o Lulu. Era loiro, feito Dilermando, diferente dos filhos de Euclides - "uma espiga de milho em meio a um cafezal", como definia, ironicamente, o escritor. O filho bastardo não melhorou em nada o ambiente. E, em 1909, o triângulo amoroso chegou ao limite do insuportável, ficou a ponto de bala - de uma bala que arruinaria a vida de Dinorah, de volta ao Rio um ano antes.Matar ou morrerDinorah na porta da casa onde ocorreu a tragédiaem 1909 (Foto: Reprodução)No sábado, 14 de agosto de 1909, Dinorah recebeu um pedido de Anna e Dilermando: que fosse à Rua Nossa Senhora de Copacabana observar, escondido, o máximo possível do comportamento de Euclides. O jogador, que há pouco soubera do relacionamento, acatou a solicitação. Afinal, era grande o temor na pequena casa da Estrada Real de Santa Cruz, na Piedade, onde agora moravam os irmãos. Solon, filho de Anna com Euclides, ouvira o pai jurar vingança. A apreensão pesava sobre os amantes.Dinorah pouco conseguiu escutar. Ao retornar para casa, teve que acalmar Solon, perturbado com todo o absurdo da situação - a mãe se relacionando com um rapaz pouco mais velho que ele, o pai prometendo matar os traidores. Eles jogaram uma partida de xadrez. Tranquilizaram-se. E foram dormir - para depois despertar no dia que mudaria suas vidas.Chovia. Euclides da Cunha escolheu sua pior roupa naquela manhã de domingo: uma calça de casemira escura, uma ceroula branca de linho, uma camisa de linho branco e uma camisa interna de flanela. No bolso, posicionou um revólver Smith and Wesson. Carregado. Pegou o trem na estação central e rumou para o subúrbio. Como não sabia onde era a casa, pediu informações a vizinhos. Até que a encontrou.A moradia de número 214 era simples - uma construção de um pavimento, com duas janelas de venezianas, um portão baixo na entrada e um jardim enfeitado por um mamoeiro. Por volta de 10h, Dinorah observava o movimento da rua quando percebeu a presença de Euclides da Cunha. Assustado, virou-se para dentro da casa e avisou que ali estava o escritor. Acharam que era brincadeira dele. Mal sabiam que era o extremo oposto disso.Dilermando rumou para seu quarto. Foi colocar seu traje militar. Anna e Solon se esconderam. E Euclides disse a Dinorah que queria falar com o irmão dele. Adentrou o portão. Invadiu a casa. Gritou: "Vim para matar ou morrer!". E depois arrombou o dormitório principal com um chute na porta, seguido de dois tiros. Começava o derramamento de sangue.Dinorah, para proteger o irmão, pulou em Euclides. Os dois se engalfinharam. O escritor disparou duas vezes na direção do jogador - um tiro pegou de raspão. O zagueiro se levantou e correu na direção de outro quarto, onde pretendia pegar uma arma. Não chegou lá. Levou um tiro pelas costas, abaixo da nuca. Desabou."Revista da Semana" mostra foto do velório de Euclides da Cunha (Foto: Reprodução)Mas Dilermando também tinha uma Smith and Wesson. E ela também estava carregada. Com Dinorah caído, seu irmão e o escritor passaram a trocar tiros. Dilermando foi atingido abaixo da garganta, acima do estômago e no tórax. Sobreviveu. Euclides foi baleado no ombro direito, no braço esquerdo e no lado direito do peito. O último tiro, de uma bala de 17 milímetros de comprimento por nove de largura, foi fatal. O autor de "Os Sertões" cambaleou até o jardim, onde caiu morto, abatido pelo amante de sua mulher. Em um último suspiro, deixou uma frase de efeito, em uma derradeiro gesto literário - mas cujo teor varia na descrição de cada jornal da época.- Sofri muito... matei... morro... mas perdôo - segundo o "Jornal do Brasil".- Odeio-te, mas te perdôo - de acordo com "O Paiz".O início do fimDinorah vive decadência: vira mendigo e vai pararem hospícios (Foto: Reprodução)Foi o fato do ano. Os jornais se esbaldaram com o escândalo. Inicialmente, para proteger a honra de Euclides, compraram a tese (elaborada pelos irmãos e por Anna) de que o escritor agira em um impulso paranoico, envolvido pelas fofocas de Angelica e Lucinda Ratto. Por poucos dias, Dilermando e Dinorah foram tratados como vítimas de um desvio mental do intelectual. Eram elogiados!- Dinorah de Assis, de exemplar comportamento e maneiras distinctas, é considerado excellente sportman. Tem grande predilecção pelo foot-ball, como hontem dissemos, occupando saliente lugar no 1º "team" do Botafogo Football Club, à rua Conde de Irajá - escreveu o "Jornal do Brasil".- Dinorah de Assis, além de ser um excellente moço, de comportamento exemplar, nas horas de lazer, era um dedicadíssimo sportman. O seu sport predilecto era o foot-ball. Devido ao seu conhecimento profundo desse jogo, tem uma collocação de responsabilidade no 1º team do Botafogo Foot-Ball-Club, à rua Conde de Irajá. Em todos os matches em que Dinorah tomava parte, quer aqui, quer em S. Paulo, destacava-se pelas suas excellentes qualidades de eximio foot-baller - derreteu-se o "Correio da Manhã".Mas isso logo mudaria. Com o aprofundamento das investigações policiais, ficou evidente que Dilermando e Anna tinham mesmo um caso, que Euclides efetivamente foi traído - e que Dinorah foi cúmplice do romance. A postura da imprensa, da noite para o dia, mudou radicalmente. Os irmãos passaram a ser perseguidos. Viraram vilões. E Dinorah não colaborou para amenizar isso.Ele passou cinco dias entre hospitais e delegacias. Tentou invadir o local do crime, já que estava sem casa, e foi prontamente criticado pelos jornais. No domingo, veio a rebeldia maior: resolveu que iria a campo pelo Botafogo contra o Fluminense.Foi um choque para a sociedade. Parecia absurdo que aquele rapaz, envolvido na maior tragédia do ano, trocasse o luto pelos uniformes de jogo, pelas chuteiras, apenas uma semana depois do ocorrido. Mas ele não quis saber. Foi mesmo assim - e como atacante. Detalhe: seguia com a bala cravada em sua espinha!O Fluminense jogava em casa, e sua torcida era maioria. Ver Dinorah com a camisa alvinegra acirrou a antipatia do público pelo adversário, conforme relatou na época o "Jornal do Brasil".- Às 3.12, quando, precedidos do referee Sr Wood, entraram os dous teams para o ground, victoriaram-nos prolongadas palmas e vivas, sendo que bem se notava ser maior a sympathia pelo Fluminense, que augmentou ainda ao ver-se entre os forwards do Botafogo o Sr Dinorah de Assis, um dos tristes protagonistas da tragedia da Piedade - escreveu o jornal.O Fluminense venceu por 2 a 1. Dinorah não fez gols. Teve uma chance, mas foi superado por Waterman, goleiro transformado em herói por impedir que um dos envolvidos na morte de Euclides da Cunha saísse vitorioso.- Dinorah aproveitou entao um bom passe de Lulu e avançou para o goal adversario. As archibancadas emocionaram-se e gritaram de toda a parte, tal era a sympathia do Fluminense: "Waterman! Waterman!". Elle já estava no seu posto, sereno, fleugmático. Dinorah aproximou-se e shootou rasteiro: - Waterman pegou a bola, sob uma estrepitosa salva de palmas, bateu-a duas vezes e passou-a - descreveu o jornal.Enquanto Dilermando se recuperava dos tiros e enfrentava a fúria popular, Dinorah, também criticado, era vice-campeão carioca com o Botafogo. O futebol era presença sólida em sua vida. No ano seguinte, ele seguiria jogando. Mas começaria a perceber algo diferente. Ao contrário do que disseram os médicos, o tiro de Euclides da Cunha causara, sim, efeitos no corpo do zagueiro. Dinorah estava perdendo parte dos movimentos.Motivo para largar os campos? Não tão cedo. Em 1910, ele participou ativamente do título estadual. Cada vez mais debilitado, fez gols nos massacres de 9 a 1 sobre o Riachuelo, em 5 de junho, e de 11 a 0 contra o Hadock Lobo, em 2 de outubro. Só não participou de uma partida na campanha de nove vitórias em dez jogos.Veio 1911, e o corpo já não obedecia mais o jogador. Em 14 de maio, ele fez seu último jogo oficial, na vitória de 3 a 0 sobre o Rio Cricket. Também foi a campo em 23 de julho, em derrota de 4 a 3 para o Americano-SP em amistoso. Impossibilitado de correr, atuou como goleiro. E nunca mais vestiu alvinegro. Menos de dois anos depois da Tragédia da Piedade, o tiro de Euclides da Cunha encerrava a carreira de Dinorah. Mas o pior ainda estava por vir...A miséria, a loucura e a morteEnquanto isso, Dinorah despencava rumo à morte. O ex-zagueiro não conseguiu superar seus dramas. A invalidez impediu que jogasse futebol, e a antipatia da sociedade tornou a vida militar inviável. Ele ficou sem norte. Caiu em uma vida de bebedeiras. Contraiu sífilis. E passou a ter distúrbios mentais.Em 1913, acompanhando o irmão em Minas Gerais, Dinorah foi parar em um hospício pela primeira vez. Foi nessa época que a bala disparada por Euclides da Cunha finalmente foi retirada de seu corpo.Um ano depois, ele voltou ao Rio de Janeiro, e a situação só piorou. Fora de si, ele vagava pelas ruas. Dava pena. Em julho, entrou em um carro, uma espécie de táxi, e circulou pela cidade durante duas horas. Pediu que o motorista parasse na Praia de Botafogo, perto do clube. Com metade do corpo imóvel, se jogou na água. A tentativa de suicídio foi impedida por uma testemunha da cena.- Paralytico de um lado, sem poder nadar, ia perecer, quando em seu auxílio correu o sr. Joaquim Alves Ferreira, empregado na Fundição Americana, que o salvou - descreveu o jornal "A Noite" em 6 de julho de 1914.O drama de Dinorah comoveu parte da sociedade. Jornais pediram ajuda a ele. O Fluminense se solidarizou e sugeriu um jogo festivo. Em vão. O ex-zagueiro voltou a viver nas ruas. Companheiros dos tempos de América faziam o possível para que, escondido, ele passasse as noites sob as arquibancadas do estádio. Colegas da época de Botafogo abriam uma sala para ele no clube. Mas Dinorah não tinha cura: louco, paralítico e miserável, ele rumava para seu fim.Em 1916, de volta a Porto Alegre, o campeão de seis anos antes teve outra tentativa de suicídio. Na Praça da Alfândega, no Centro da cidade, deu um tiro no peito. Novamente, não conseguiu dar fim à vida. Nos anos seguintes, reencontrou um pouco de paz ao voltar a viver com o irmão em Bagé, no interior gaúcho. Lá, segundo as memórias de Judith, filha de Anna e Dilermando, até tentou ensinar Lulu, seu sobrinho, a jogar futebol. Era uma cena comovente: de muletas, quase imóvel, brincava com uma bola - o objeto que tanto amava.Mas os sinais de recuperação eram falsa esperança. Em 1921, novamente em Porto Alegre, a tragédia do ex-zagueiro encontrou seu ponto final.Era domingo. Por volta de 17h, depois de conversar com conhecidos na Rua Barros Cassal, Dinorah rumou para o Rio Guaíba. E repetiu o que fizera no Rio de Janeiro. Na altura da Voluntários da Pátria, no trapiche da Companhia Becker, caiu para a morte. Foi visto por um policial, que logo iniciou a tentativa de encontrá-lo. Em vão. O corpo só foi achado uma hora depois, já sem vida.Jornal "Correio da Manhã" noticia o suicídio deDinorah em 1921 (Foto: Reprodução)"Campeão desde 1910", como canta o hinoForam muitas as vítimas daquela manhã de domingo em 1909. Euclides foi para matar e acabou morto. Dois de seus filhos, Solon e Quidinho, não suportaram os acontecimentos e, direta ou indiretamente, também morreram por causa daquela tragédia. Dilermando teve longa vida, casou-se duas vezes, colecionou filhos, mas sempre conviveu com a imagem de vilão, de assassino - até falecer em 1951, vítima de colapso cardíaco. Anna de Assis também tocou sua vida, conseguiu viver com o homem que amava, mas sempre com a fama de adúltera tatuada em sua testa. Também morreu em 1951, de câncer.Mas a maior vítima talvez tenha sido justamente a mais involuntária. Dinorah não traiu ninguém, não tentou matar ninguém. Por crimes e pecados de outros, pagou com o corpo, com a mente e com a vida. Pior: corre o risco de cair no esquecimento, mesmo tendo conquistado, com uma bala cravada na espinha, um título tão representativo para o Botafogo - o clube "campeão desde 1910", como se orgulha a primeira estrofe de seu hino.* Colaborou Eduardo Santos
JOGOS PELO BOTAFOGO09/05/1909 – 2 x 2 Fluminense30/05/1909 – 24 x 0 Mangueira13/06/1909 – 2 x 1 América11/07/1909 – 13 x 0 Hadock Lobo22/08/1909 – 1 x 2 Fluminense12/09/1909 – 2 x 1 Cruzador Amethyst-ING19/09/1909 – 4 x 3 Cruzador Amethyst-ING26/09/1909 – 1 x 1 América02/10/1909 – 2 x 1 A A Palmeiras22/05/1910 – 1 x 4 América05/06/1910 – 9 x 1 Riachuelo26/06/1910 – 3 x 1 Fluminense03/07/1910 – 7 x 0 Hadock Lobo10/07/1910 – 6 x 0 Rio Cricket17/07/1910 – 4 x 4 São Paulo Athletic15/08/1910 – 7 x 2 A A Palmeiras07/08/1910 – 5 x 0 Rio Cricket04/09/1910 – 15 x 1 Riachuelo25/09/1910 – 6 x 1 Fluminense02/10/1910 – 11 x 0 Hadock Lobo12/10/1910 – 2 x 1 Combinado Carioca06/11/1910 – 4 x 4 Fluminense13/11/1910 – 5 x 2 São Cristóvão07/05/1911 – 1 x 2 São Paulo Athletic14/05/1911 – 3 x 0 Rio Cricket23/07/1911 - 3 x 4 Americano-S
João Saldanha*Já faz muito tempo, acho que durante a guerra, os jogadores do Posto 4 FC, campeoníssimo da praia, dirigido pelo "Trenier" mais famoso da Costa do Atlântico, Neném Pé de Prancha, tinham resolvido dar uma festa de fim de ano, na garagem da casa de um tio do Renato Estelita. O Lá Vai Bola FC aderiu ao baile e compraram três barris de chope. Eu não topei e disse na esquina do Café do Baltazar: "Não vou. Na festa do ano passado, na garagem do Pé de Chumbo, quebraram tudo e até hoje o clube não pagou a cristaleira da avó dele que estava guardada lá. Não vou mesmo. Chega de encrenca."Meu irmão Aristides, o Hélio Caveira-de-Burro e o Orlando Cuíca me acompanharam na idéia de não ir ao baile e fomos tomar um chope, sossegados, num bar vazio, na esquina da Avenida Atlântica com Rua Constante Ramos. A noite estava boa e o papo também. Mais tarde, passou por ali o Jaime Botina e disse: "Caí fora do baile. Tem gente demais e muito nego bêbado. Vai dar galho." E eu emendei: "Não disse?"Lá pelas duas horas da manhã, parou um táxi daqueles grandes e saltou o doutor A. Coruja, esfregando os óculos, nervoso. O doutor Coruja era um impetuoso lateral direito. Só dava bico na bola de borracha e Neném Prancha decretou: "Só joga se cortar as unhas. Uma bola está custando cinco pratas." Seu controle de bola não era dos melhores, mas quebrava o galho na lateral direita. O galho ou o ponta-esquerda adversário.Mas chegou e foi falando incisivo: "Se vocês são machos e meus amigos, têm de ir lá comigo. Fui desacatado mas eram muitos." E foi logo dando ordens: "Entrem aqui no táxi e vamos lá."Lá aonde?" disse o Hélio. Coruja explicou: "E na Rua Joaquim Silva. A mulher me desacatou, ofendeu minha mãe e não pude reagir porque ela estava com três caras na mesa. Vocês têm de ir comigo ou não são meus amigos." Repetiu isto umas cinco vezes e completou: "Como é, poetas? Vamos ou não vamos? Vocês agora deram para medrar?"Eu cochichei para o Cuíca: "O Coruja está de porre. Não vou me meter nisto." O Cuíca respondeu: "Ele vai chatear a gente o ano inteiro por causa disso. O Coruja quando bebe é assim. Fica remoendo os troços. Olha, ele veio de lá até aqui e gastou meia hora. Para voltar, outra meia hora. Os caras já não estão mais lá, a pensão já deve estar fechada e a mulher dormindo com alguém." E virando-se para o doutor Coruja: "Tá bem, nós vamos, mas vem tomar um chopinho com a gente." Coruja topou e mandou o português do táxi esperar.Tomamos o chope bem devagarinho e fomos, ainda devagar, para a Rua Joaquim Silva. O táxi "disse" que não esperava mais e foi embora. Subimos a escada de madeira, comprida e estreitinha, e demos numa sala de uns três metros por quatro, se tanto. Quatro mesinhas, só duas ocupadas por fregueses, e, nas outras, umas três mulheres com cara de sono. O diabo é que numa das mesas estava a tal mulher papeando com os três caras. Doutor Coruja partiu direto e foi dizendo: "Repete agora, sua vaca."Os homens levantaram, o que estava mais perto levou um soco do doutor e o pau comeu solto. O lugar era apertado e eu me lembrei da cristaleira da avó do Renato. Um dos caras era uma parada, brigava bem. O garçom não parecia homem mas era e as mulheres fizeram uma gritaria dos diabos. As mesas e as cadeiras foram para o vinagre, um dos caras se mandou escada abaixo, quando alguém apagou a luz. Escutei a voz de Hélio Caveira-de-Burro, que era muito experiente: "Vamos dar o fora."Saímos rápido e ainda levei com uns detritos atirados pelas mulheres da janela. Um guarda apitou e saímos pelas ruas da Lapa. Uns se mandaram pela Conde Laje e outros pela Glória. Eu fui parar no Passeio Público, arrumei um táxi e voltei para o ponto de saída. Quando cheguei, Orlando Cuíca já estava e disse: "O guarda começou a dar tiro e quase me pega. Tive sorte."Depois chegaram Hélio e meu irmão, que vieram noutro táxi. Hélio falou: "O grande era uma parada. Mas peguei ele bem com a perna da cadeira. Senão a gente não ganhava." Meu irmão estava com a camisa rasgada e disse que foi a mulher que se atracou nele. "Não bati mas tive de dar uma 'banda' nela. Juntou pé com cabeça. Depois que Hélio dominou o grandalhão, foi barbada. Dei uma no de terno marrom que ele se mandou pela escada." E eu disse: "Ficou tudo quebrado e a mulher que o Coruja bateu não levantou, mas eu não vi sangue."E ficamos relaxando um pouco quando chegou um táxi e o doutor Coruja saltou esfregando os óculos com um lanho no rosto. Hélio perguntou: "Como é doutor, se machucou?" "Nada, um arranhãozinho à toa." E prosseguiu: "Puxa, agora estou satisfeito. Há mais de três meses que eu estava para ir a esta forra.""O quê?" — berramos em coro — "O negócio foi há três meses!?" E Coruja explicou, calmamente: "Foi sim e eu não bati nela porque estava acompanhada." Então meu irmão perguntou: "Quer dizer que os caras que apanharam não eram os mesmos?" Coruja respondeu: "Claro que não, meus poetas, mas o que tem isto demais?"Nesta altura, o sol já estava aparecendo lá na Ponta do Boi, iluminando o primeiro dia do ano e desejando boas entradas para a excelentíssima senhora mãe do doutor A. Coruja.*João Saldanha era gaúcho e nasceu em 1917 na cidade de Alegrete. Jornalista combativo, treinador, apaixonado pelo futebol, conseguiu unir o Brasil — então politicamente dividido — em 1969, por ocasião das eliminatórias para aquela que seria a Copa do tricampeonato no México. De temperamento difícil, extremamente corajoso, fez muitos inimigos na vida. Mas todos admiravam aquele homem (ainda que muitas vezes não o perdoando pelas aventuras que dizia — e acreditava — ter vivido) que assistiu a todas as Copas do Mundo de futebol; que, como jornalista, cobriu a guerra da Coréia; que desembarcou na Normandia com Montgomery e que fez a grande marcha com Mao Tse-Tung. Faleceu no dia 12 de julho de 1990, durante a Copa do Mundo. O texto acima consta do livro "Nelson Rodrigues e João Saldanha - a crônica e o futebol", compilado por Ivan Candido Proença, - Rio de Janeiro - Educom - 1976, pág. 96-98, e extraído do livro "As cem melhores crônicas brasileiras", Editora Objetiva - Rio de Janeiro - 2007 - pág. 206, organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.